Fios do Tempo. Celso Furtado: um polímata visionário – por Paulo Henrique Martins

Na última quinta-feira realizamos a live “Em busca de um país: reencontro com Celso Furtado“, onde conversamos sobre a obra de Furtado no contexto do lançamentos do livro “Correspondências intelectuais 1949-2004” (organizado por Rosa Freire d’Aguiar).

Como fruto deste dia, trazemos hoje o belo texto de Paulo Henrique Martins (UFPE) sobre “Celso Furtado: um polímata visionário”. A partir da leitura das correspondências intelectuais, Paulo Henrique nos proporciona uma síntese do pensamento de Furtado e, ao mesmo tempo, nos mostra quais são suas contribuições para pensar as razões de nossa crise e construir as vias de uma saída dela.

A. M.
Fios do Tempo, 10 de maio de 2021



Celso Furtado:
um polímata visionário

O polímata

O livro de Rosa Freire d’Aguiar Celso Furtado: Correspondência intelectual 1949-2004 confirma o reconhecimento do autor como um intelectual erudito com ampla formação humanista e orientado por um compromisso moral e político inegável com a questão do desenvolvimento humano. Mais que isto, suas cartas ajudam a corroborar a atualidade do pensamento de Celso Furtado para se analisar a crise atual do Brasil e da América Latina e os rumos que o debate precisa tomar para que possamos pensar a agenda da pós-crise. Afinal de contas, Estado, planejamento, desigualdade, concentração de poder e democracia continuam a se constituir em temas estratégicos que devem ser atualizados, agora, por uma forte pauta ambiental e climática no atual contexto mundial.

As correspondências selecionadas nos permitem compreender sua rica rede de relacionamentos, envolvendo personalidades influentes nas ciências sociais, na vida política e cultural. Elas também revelam o engajamento do autor como crítico influente das grandes questões que atravessam a América Latina e o mundo na segunda metade do século XX. As cartas selecionadas permitem se organizar várias linhas de reflexão como aquelas da Cepal, da Aliança para o Progresso, da ditadura, do exílio entre outros. As cartas revelam seu prestígio intelectual junto a acadêmicos e políticos renomados no plano internacional, como Bertrand Russel, Fidel Castro, Robert Kennedy, Henry Kissinger, ou no plano nacional, como Florestan Fernandes, Antônio Callado, Octávio Ianni, Thiago de Mello entre outros. As cartas orientam um mapeamento complexo dos temas e das situações cotidianas que marcam sua biografia, sobretudo a partir dos anos cinquenta.

O livro da Rosa Freire me desperta dois sentimentos que orientam minhas reflexões sobre Furtado. Um deles diz respeito à minha admiração pela complexa personalidade do autor no bom sentido do termo, ou seja, alguém que soube captar o respeito de importantes acadêmicos, políticos e artistas ideologicamente diversos. Defini-lo simplesmente como um economista não esclarece o seu perfil complexo. Ele não era só economista, mas um intelectual com interesses em diferentes áreas do conhecimento como sociologia, política, filosofia, história, política, cultura, gestão pública e, sobretudo, desenvolvimento humano. Segundo Rosa, ele teve inclusive interesse de escrever uma biografia de Leonardo da Vinci, o que gerou uma disputa acirrada de perspectivas com seu amigo Ernesto Sábato no clássico Café La Coupole, em Paris, na época que ali residiu para fazer seu doutorado (p.318).

O outro sentimento que me desperta a leitura da Correspondência é aquele da indignação que surge quando tomamos consciência do nível de injustiça revelado pelo seu banimento da vida política e acadêmica brasileira com o golpe militar de 1964. Sobretudo quando consideramos que Furtado foi o intelectual brasileiro mais brilhante e autor de uma teoria geral do desenvolvimento humano da maior atualidade. Nesta perspectiva, gostaria de salientar que sua obra continua sendo fundamental para uma crítica geral do neoliberalismo e para se pensar um novo padrão de desenvolvimento pós-neoliberal fundado na revalorização do Estado e cuja atualidade está sendo apresentada agora pelo governo Biden nos Estados Unidos.

Sobre o primeiro sentimento:

Com relação ao primeiro sentimento, o da admiração, é justo definir Furtado como um polímata, aquele individuo cujo conhecimento não está restrito a uma única área, detendo um grande conhecimento em diversos assuntos. Isto nos lembra o livro de Peter Burke, O Polímata, em que este autor refaz a história dos últimos quinhentos anos pelas performances de personalidades de múltiplos talentos: desde Leonardo da Vinci até Susan Sontag, passando por Leibniz, Goethe, Aldous Huxley, Jorge Luiz Borges, Umberto Eco entre outros. O objetivo de Burke foi demonstrar que a história do conhecimento não pode ser explicada apenas a partir dos especialistas, dependendo em grande parte daqueles indivíduos com ampla formação geral e capazes de olhar além dos horizontes dados. Afinal, como pergunta Joseph Needham no seu ensaio autobiográfico: “como aconteceu de um bioquímico se transformar em historiador e sinólogo?” (Burke, p. 26). Esta mesma questão podemos fazer com relação a Furtado após ler as suas correspondências: “como aconteceu de um bacharel em direito se transformar num economista, historiador, sociólogo e gestor público famoso?”.

A vida de Celso Furtado revela esta trajetória de um polímata visionário e curioso que em 1946, com 26 anos, já estava na Europa para conhecer o contexto caótico do pós-guerra que lhe parecia fascinante para entender tanto a crise dos países avançados como os fundamentos do subdesenvolvimento. Pois, explicava ele, o mundo de sua geração “seria moldado pelas forças que viesse a prevalecer no processo de reconstrução da Europa em particular da Europa Ocidental”. E continuava: “Não é sempre que se pode testemunhar a gestação do futuro de toda uma geração. O fato é que me empolgava o desejo de observar as transformações em curso” (Furtado, 1985, p.14).

Sobre o segundo sentimento:

Entender Furtado como polímata visionário é importante para se compreender que sua obra intelectual é muito maior que todas as tentativas arbitrárias de denegrir sua imagem e que nos geram indignação. Sua obra não pode ser definida apenas como expressão de uma disciplina especializada como a macro ou micro economia que se ensina atualmente nas universidades. Suas reflexões teóricas resultam da capacidade de fazer uma leitura crítica, comparativa, transversal e transtemporal de temas paradoxais, como desenvolvimento e subdesenvolvimento, centro e periferia, economia e política. Estes temas emergiam no seu imaginário visionário a partir do contexto caótico do pós-guerra que rompeu com a antiga divisão internacional baseada no imperialismo inglês para uma nova, fundada no imperialismo norte-americano.

A leitura das correspondências de Furtado revela um autor complexo, arrojado, aventureiro e aberto a uma revisão profunda dos conhecimentos sobre o subdesenvolvimento, em particular sobre os entraves e possibilidades de desenvolvimento da América Latina e do Brasil. Este pensamento visionário já se revelava quando esteve na França entre 1946 e 1948 para realização de seu doutorado em economia e, em seguida, quando se agregou à CEPAL (Comissão Econômica da América Latina), ampliando seu horizonte intelectual e cultural.

Celso era convidado para os grandes eventos por ser um “especialista” em Brasil, sem dúvida. Mas também em América Latina, desenvolvimento, Terceiro Mundo, imperialismo, Nordeste, reforma agrária, planejamento. Pelo binóculo de sua correspondência, vê-se um mundo mais internacionalista e aberto para repensar a paz e a fome.

Mesa-redonda “Em busca de um país” – assista abaixo

O polímata como um carteador de reflexões

Lendo a sua Correspondência Intelectual somos tomados por uma certa indignação com relação à injustiça representada pela cassação de seus direitos em 1964. E, certamente, a consciência desta injustiça é que lhe levou a não aceitar facilmente o rótulo de exilado. Como explica Rosa: “Celso não gostava de se apresentar como exilado. Vez por outra, se autodenominava un métèque, recorrendo ao termo que designava os estrangeiros que eram meio cidadãos residentes na antiga Atenas” (p.14). Mas o exílio, sem dúvidas, provocou uma ruptura na sua trajetória, levando-o a tomar novas decisões profissionais e enfrentar o choque cultural num país estrangeiro.

Este sentimento de indignação está presente numa das cartas endereçadas por Albert Hischman a Celso avaliando os erros das esquerdas naquele momento do golpe:

Precisamos de uma análise do que deu errado, quando e por quê. Por que as forças da extrema esquerda na América Latina são tão perdidamente dogmáticas? Por que elas se tornam tão facilmente, e tão depressa, superconfiantes depois dos primeiros sucessos, pensando que podem tratar qualquer pessoa como um bloco reacionário e irremediavelmente equivocado?
(p.263).

O fato é que a cassação de seus direitos significou uma violência contra a imensa contribuição que ele havia prestado nos anos cinquenta para a América Latina durante sua estadia na CEPAL, e também no Brasil, ajudando a introduzir a questão do planejamento como base para a modernização do Estado e para adoção de políticas industrialistas. Em correspondência com Raul Prebisch, em 1953, ele lembrava que “Com a presente desejo informar-lhe que o comandante da Escola Superior de Guerra, gen. Juarez Távora, convidou-me para fazer uma conferência sobre a técnica de planejamento econômico. Essa escola reúne oficiais superiores do Exército, da Armada e da Aviação, e um certo número de civis quase todos do Congresso Nacional. Parece-me que a oportunidade é extremamente interessante para expor o que a Cepal já fez nessa matéria” (p. 392). Prebisch reagiu com certo entusiasmo vendo ai um sinal importante para apoio dos militares a tão necessária reforma do modelo econômico de base primário-exportadora na América Latina.

O fato é que a radicalização ideológica da guerra-fria entre americanos e soviéticos levou ao fortalecimento do conservadorismo das elites oligárquicas, inclusive as militares, como vemos nas trocas de cartas sobre o tema da Aliança para o Progresso. Furtado, por seu lado, não era de fazer condescendência com relação a atitudes políticas que lhe pareciam dúbias, o que o levou a revisar sua relação com os norte-americanos em torno do desenvolvimento da Aliança para o Progresso, como vemos na sua correspondência com John Dieffenderfer.

Inicialmente Furtado se mostrou simpático com a ideia da Aliança e com sua implementação. Henry Kisinger inclusive, como revelam as correspondências, fez elogios que pareciam apontar para a concordância de ambos com relação a um programa de desenvolvimento que lembrava o Plano Marshall. Diz o antigo secretário de estado norte-americano: “Desde a volta de minha viagem ao Brasil e uma subsequente à Europa, eu gostaria de lhe dizer o quanto apreciei ter me concedido tanto do seu tempo no Recife. Cheguei ao Nordeste sentindo-me muito pessimista e saí enormemente encorajado pela nossa conversa. De fato, o seu programa pertence às coisas mais construtivas que vi no Brasil, e a ele desejo muitas felicidades, aos poucos ele foi se afastando o que contribuiu para que as forças mais conservadoras começassem a tê-lo como alvo politico”. No entanto, as tentativas dos norte-americanos de intervir sobre os critérios de seleção dos governadores beneficiários levou Furtado a se retrair com relação ao programa.

Esta parceria se deteriorou principalmente nos anos anteriores ao golpe de 64. Por um lado, Celso passou a adotar posições políticas mais firmes na defesa do planejamento nacional e regional soberano; por outro, verificou-se a ampliação das reações das forças conservadoras contra politicas modernizadoras. Como esclarece Rosa Aguiar: “Aos poucos a Aliança foi se tornando seletiva, condicionando seu apoio financeiro a governos mais afinados com os partidos de direita. Esse desvirtuamento levou Celso Furtado a trocar um moderado otimismo pela descrença na iniciativa de Kennedy, como mostram algumas destas cartas” (p. 275).

Resgatando o valor do polímata para o entendimento da crise presente

É importante reviver a contribuição de Furtado para a análise da atual realidade do país e da região na medida em que ela aponta para uma teoria geral da modernização periférica e, em particular do desenvolvimento da América Latina, que deve ser resgatada como objeto de uma ampla revisão das razões da crise brasileira e como fonte para se pensar as saídas possíveis. Há alguns pontos a assinalar que se revelam nas cartas e que explicam sua posição como intelectual engajado com o desenvolvimento social inclusivo, com a democracia e com a organização de uma teoria geral da modernização das sociedades periféricas que é de grande atualidade para o momento presente.

Sobre a política:

Furtado entendeu, desde o tempo em que esteve na Europa para seu doutorado, que o fascismo era uma ameaça que pairava permanentemente sobre as sociedades democráticas. Ele observou que as economias de mercado eram intrinsecamente instáveis e que essas instabilidades tendiam a se agravar. Este insight se mantém atual e nos faz lembrar haver embutido no neoliberalismo um programa fascista. Pois as propostas de desregulação do Estado de bem-estar social e apropriação dos mecanismos de políticas monetárias e fiscais pelas forças do mercado, gera, na prática, uma situação caótica que apenas estimula práticas fascistas.

Sobre a teoria do poder:

Os impactos do fascismo sobre a desorganização da democracia e sobre a concentração de poder econômico, fortalecendo as práticas totalitárias e reduzindo os espaços da liberdade individual, levou Furtado a repensar a relação entre poder, democracia e desenvolvimento a partir da organização de um Estado modernizador. Ele entendeu que a superação das condições estruturais do subdesenvolvimento tanto no plano da economia como das condições de promoção da democracia exigia iniciativas políticas e institucionais capazes de reverter as adversidades internas e também aquelas no plano das relações internacionais. Para ele, logo, haveria que se repensar o poder nas sociedades nacionais para se estabelecer as condições políticas de desenvolvimento periférico.

Sobre o planejamento:

Para se sair do impasse de situações de crise, ele entendeu a importância do planejamento para a reconstrução institucional da sociedade nacional e com o objetivo de promover o sistema democrático. Assim, ainda na época de seu doutorado, ele se aproxima da obra de Karl Mannheim em particular de seu livro sobre Man and society in age of reconstruction (Harcourt, Brace., 1940) (Libertad y Planificacion Social, Fondo de cultura, 1942) para entender a planificação como dupla racionalidade: como meio e como fim. Para ele (1985, p.17), a planificação seria a solução para prevenir as crises e neutralizar os efeitos sociais produzidos pela “instabilidade inerente à economia de mercado”. Contra esta leitura externalista equivocada que reproduzia o subdesenvolvimento, Furtado buscou entender os mecanismos de formação de poupança e de atração de investimentos para induzir a industrialização interna.

Tal movimento de reorganização da divisão internacional do trabalho entre países industrializados e não industrializados teria impacto, acreditava Furtado, na internalização e direcionamento da inovação tecnológica, na geração de emprego e no aumento do consumo. Tudo isto, claro, exigia a organização de um Estado empreendedor, capaz de superar sua inércia burocrática para promover pelo planejamento estatal uma série de ações de desenvolvimento articuladas nos planos regional e nacional. Este tipo de raciocínio continua extremamente atual sobretudo quando se observa que a ideologia da globalização como padrão econômico uniforme e transnacional está se desfazendo.

As estratégias de superação do subdesenvolvimento

Ele entendia que a caracterização de economia primário-exportadora nessas antigas áreas de colonização não era simples resultado das etapas do desenvolvimento como propunha Rostow, com quem inclusive ele se encontrou nos Estados Unidos e de quem discordou assim que leu sua teoria da modernização por etapas. Furtado entendeu que contra o determinismo etapista de Rostow tínhamos na América um outro tipo de determinismo mais complexo, aquele da dominação colonial e histórica (p. 68). Mas, ao contrário de Rostow, que defendia a tese que os países subdesenvolvidos deveriam fazer o mesmo percursos dos industrializados para se desenvolver, Furtado propunha a possibilidade de superar a desigualdade entre ricos e pobres a partir da intervenção da política na economia.

Nesta perspectiva, romper com o subdesenvolvimento e promover a industrialização refletiria um processo histórico complexo que impactaria não somente nas atividades econômicas mas igualmente sobre a construção da nacionalidade (1985, p.70). Temos aqui, mais uma vez, uma reflexão sociológica ampla que tem atualidade para se entender a relação entre empobrecimento econômico, o desaparecimento da cidadania política e democrática e a emergência de práticas fundamentalistas e mesmo fascistas.

Na medida em que Furtado compreendeu não haver possibilidades de reversão automática das desigualdades internacionais sem intervenção sobre o jogo da balança de pagamentos, ele passou a simpatizar com ações voltadas ao fortalecimento de políticas de investimentos públicos internos. Segundo ele, a concentração de renda em benefício dos países industrializados tendia a se aprofundar, caso não houvesse uma intervenção precisa da política sobre a economia (1976, p.103).

Nesta direção, ele via que a única saída para os países periféricos evitarem o constrangimento da ordem internacional desigual seria a via da industrialização induzida por um poder democrático voltado para gerar inclusão econômica e social. Temos aqui mais um ponto de maior atualidade de sua teoria geral do desenvolvimento para se pensar os desafios atuais que a América Latina e o Brasil enfrentam para reverter o movimento de desindustrialização que vem ocorrendo há vários anos.

Sobre a sua teoria estruturalista pós-colonial

Celso Furtado entendia que sua contribuição teórica tinha um valor próprio que não podia ser reduzido à “escola cepalina”. A sua elaboração conceitual do estruturalismo como escola de pensamento é de grande complexidade pois busca articular a crítica da “conjuntura” denunciada pelo desequilíbrio das trocas econômicas internacionais com dois outros elementos, um histórico e outro geográfico. Um deles, as limitações históricas derivadas do passado colonial e da prevalência da economia exportadora de matérias-primas; o outro, a importância da questão territorial na organização de políticas econômicas públicas e privadas. Neste ponto, ele revela a influência de François Perroux, um dos seus professores na época do doutorado e que procurava articular a questão econômica com aquela física e geográfica para permitir se passar de uma perspectiva de “economia externa” à de “espaço estruturado” (1985, p.34).

Segundo ele, a possibilidade de configurar territorialmente os investimentos produtivos era a condição de viabilidade de se planificar, isto é, de se hierarquizar as decisões econômicas e politicas de médio e longo prazo a partir de uma vontade de poder tornada publicamente visível. Deste modo, vemos aqui como a teoria estruturalista de Furtado se abre para uma discussão sobre poder e desenvolvimento que se aprofunda com as teses que defende sobre dependência (1956), e que vão influir no desenvolvimento posterior das teorias da dependência nos anos sessenta e setenta.

Assim, vale a pena lembrar a carta escrita por Fernando Henrique Cardoso a Celso Furtado afirmando a importância dos estudos deste último para se pensar as consequências do desenvolvimento com concentração de renda, lembrando que “estou certo de que esta investigação terá importância decisiva para avaliar as alternativas existentes para os países em desenvolvimento (isto é, em estagnação…) da América Latina. E, num sentido mais amplo, seus estudos darão o marco fundamental para as análises futuras de nosso grupo sobre a sociologia do desenvolvimento”. (p. 93-94). Vemos aqui a conexão que se estabelecia entre o estruturalismo furtadiano e as teorias de dependência.

Este entendimento de Furtado sobre a relação entre desenvolvimento e dependência foi atualizado, mais tarde, nos anos oitenta a partir da revisão do debate sobre dívida externa (1983), quando ele explora o tema da transnacionalização do sistema econômico brasileiro. Ele lembra acertadamente que a transnacionalização em curso na década de 80 não está mais ligada somente à emergência de uma nova divisão internacional do trabalho no qual haveria intercâmbio entre a economia Internacional e a economia interna. Para ele, há algo mais do que isso: há neste momento uma transformação dos circuitos internos particularmente os monetários e financeiros, colocando em prática uma nova racionalização da política econômica. Na verdade, o que estamos vendo neste momento, acrescentamos, foi a lenta emergência do neoliberalismo financeiro e a crise dos modos tradicionais de financiamento do Estado desenvolvimentista. Suas reflexões confirmam o que falamos sobre seu lado visionário.

Atualidade do pensamento de Furtado

O tema do desequilíbrio das trocas econômicas internacionais desiguais entre países do centro e da periferia, que ele observou quando ainda produzia sua tese de doutorado, continua sendo muito atual quando analisamos a situação econômica degradante dos países latino-americanos na atualidade, assim como o enfraquecimento dos processos democráticos.

O processo de desenvolvimento nacional conhecido pelo Brasil e outros países da região entre os anos 50 e 80 se deveu em grande parte a intelectuais como Celso Furtado. O esgotamento deste modelo nos anos oitenta deve ser atribuído a causas diversas que não se limitam ao esgotamento da capacidade de endividamento externo do Estado brasileiro. Há outros fatores relevantes, como aquele da financeirização interna que é bem lembrado por Furtado (1983). Nos anos noventa, a expansão da lógica mercantil especulativa confirmou as suspeitas de Celso Furtado.

Assim, a economia brasileira, a partir sobretudo dos anos noventa, passou a conhecer dois processos de desinstitucionalização histórica paralelos, que desmontaram os ganhos do desenvolvimentismo nacional. Um deles foi a estratégia de desmonte do Estado indutor de investimentos produtivos e de geração de políticas de bem estar com vista a facilitar a financeirização da economia nacional. O outro foi a eliminação das políticas protecionistas com abertura do mercado interno para a concorrência estrangeira que levou a crescente desindustrialização e desaparecimento de emprego produtivo. Tudo isto se traduziu em privatização de parte considerável das empresas públicas e reforço do sistema financeiro no comando da economia. O resultado foi a destruição dos mecanismos de planificação de médio e longo prazo e o reforço das ações especulativas de curto prazo.

O quadro atual da economia brasileira revela os mesmos problemas observados por Furtado nos anos cinquenta: indústria pouco competitiva e especialização no setor agro-exportador que é muito lucrativo mas que tem efeito indutor limitado no que diz respeito à expansão do mercado interno e, logo, na geração de emprego, renda e inovação empresarial e técnica.

A situação da soja brasileira é bem exemplar de uma atividade econômica que continua se expandindo em ritmo econômico significativo mas sem incorporar inovações tecnológicas que permitam reduzir os usos das terras disponíveis para agricultura. Este tipo de expansão da soja, fundada numa tecnologia semi-intensiva que se alia à pecuária extensiva para depredar o meio ambiente, lembra a antiga economia exportadora de bens primários que chamou tanto a atenção de Furtado.

O fato é que a estrutura da economia brasileira atual é o sintoma perverso de uma sociedade que abriu mão do direito soberano de investir na sua autonomia e na emancipação dos brasileiros. Por tudo isso, o pensamento do polímata Celso Furtado é fundamental para guiar as decisões políticas relacionadas com o futuro do pais a partir de agora. Por um lado, ele abre novos horizontes de reflexão e de ação que as disciplinas especializadas não conseguem abranger. Por outro, ele libera a perspectiva utópica, a de que é sempre possível reinventar o mundo mesmo em contextos adversos como o atual.

Referências

Burke, Peter (2020) O polímata. Uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag), São Paulo: UNESP

Furtado, Celso ((1985) A fantasia organizada. Rio: Paz e Terra.

_______ (1983) A nova dependência. Paz e Terra.

PAULO HENRIQUE MARTINS é sociólogo, professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) e vice-presidente da Associação Mouvement Anti-utilitariste en Sciences Sociales (MAUSS). É membro do conselho editorial da Revue du MAUSS e co-fundador e co-editor da Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PósColoniais (Realis). Publicou pelo Ateliê de Humanidades Editorial: Itinerários do dom: teoria e sentimento (2019) e Teoria crítica da colonialidade (2019). Esse último livro foi traduzido para o inglês e publicado em nova edição: Critical Theory of Coloniality (Routledge, 2022).

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