Fios do Tempo. Não consigo respirar: o corpo como um espaço de colonização racializadora – Adrián Scribano

Publicamos agora, como preparativo para a live desta quinta-feita (16 de julho) com o tema As mil faces do racismo, o artigo “Não consigo respirar: o corpo como um espaço de colonização racializadora”, do sociólogo argentino Adrián Scribano. Ele é uma tradução de texto publicado publicado nos Documento de Trabalho do CIES (Centro de Pesquisas e Estudos Sociológicos:  “Contra o Racismo”.

Neste pequeno artigo, Scribano, um dos principais sociólogos da emoções e dos corpos, faz uma reflexão sobre o significado metafórico e metonímico do sufocamento de George Floyd, a fim de pensar as distintas formas de subjugação e de colonização racializadora dos corpos. Mas ele não se contenta em enunciar as nossas perdas de respiração diante do poder, pois também aponta para os caminhos de uma ação coletiva que passe do grito sufocado à resistência autônoma e amorosa que dele pode se desprender.

Aproveitamos este contexto para trazer mais uma ilustração feita pelo grande artista franco-pernambucano Sérgio Bello, retirada da exposição “O Grito dos Povos (1991), a fim de anunciarmos, no mês de seu aniversário, que o Ateliê de Humanidades vai publicar nos próximos dias, em forma de vídeos, uma bela entrevista feita com ele, da qual participaram André Magnelli e Paulo Henrique Martins.

A. M.
Fios do Tempo, 14 de julho de 2020



“Não consigo respirar”:
o corpo como um espaço de
colonização racializadora

Dos seus pais fundadores, a sociologia dos corpos/emoções analisou a conexão entre respiração e emoções, respiração e experiências, respiração e sensações. 

No capítulo VII. Low Spirits, Anxiety, Grief, Dejection, Despair, do livro “The expression of the emotions in man and animals” de Charles Darwin, entre outras referências, pode ser lido:

A respiração torna-se lenta e débil, e é muitas vezes interrompida por suspiros profundos. Como observa Gratiolet, sempre que a nossa atenção se concentra durante muito tempo em qualquer assunto, esquecemo-nos de respirar, e depois aliviamo-nos com uma inspiração profunda; mas os suspiros de uma pessoa triste, devido à sua lenta respiração e circulação lânguida, são eminentemente característicos
(Darwin 1897:178)

No vídeo pode-se ver o assassinato de George Floyd onde se ouve e sente como ele diz: “Não consigo respirar”. Assim, a pornografia de poder é exibida numa sequência de vídeo. 

Este vídeo é um mural e uma cena. É um mural porque, graficamente, faz ver, permite observar como se entende a ideia de submissão pelas forças da “lei e da ordem”.

A subjugação é uma das formas básicas da configuração da racialização, não só dos que sofrem, mas também para aqueles que vêem o sofrimento, das testemunhas do sofrimento. O vídeo é um mural que demonstra como é a paisagem do esquecimento do outro como pessoa, é um mural que pinta a estrutura que torna o outro alguém que está insignificantemente sob a subjugação, é um mural que mostra como é uma estrutura onde alguém não pode usar livremente o seu corpo.

Mas é também um vídeo onde o poder do dominador é encenado, onde um grupo de policiais se protege contra a impunidade, onde o poder se torna omnimodal ao ser encenado. É uma cena que tem um roteiro: a tremenda discrição do poder de uns poucos. Um roteiro sob medida para aqueles que estão no comando, um roteiro sob medida para aqueles que têm o poder da vida e da morte. É um roteiro que estrutura as ações, que é feito com protocolos, o que representa a discricionalidade de ter a capacidade de dar vida ou tirar a vida. Uma dramatização de um poder que significa a si mesmo por trás da máscara de servir e proteger; naturalmente, servir aos poderosos e proteger o capital.

É uma cena onde os atores são prefigurados por suas disposições, posições e condições de classe, e que estão acima de qualquer sinal de ressonância de uma voz humana que diz: “Eu não consigo respirar”.

É uma cena que nos permite ver como se tramam a ação e a narração de séculos de ocupação de uma gramática da ação, uma posição de dominador e uma posição de dominado. É uma cena com uma gramática de ação onde claramente existe uma outra que não importa, que é absolutamente descartável. Um outro que sequer pode pronunciar seu nome, por isso é pornográfico, porque não deixa nada a ser escondido, porque se esforça precisamente para fazer as pessoas verem.

Este mural e esta cena deixam muito claro qual é o regime de colonização do corpo em condições de expansão do poder racializador que o capitalismo está adquirindo em sua maximização como um sistema planetário. Este assassinato é metonímico, é um tropo que nos fala sobre como são as lógicas do poder segregacionista e racialista em todo o planeta. É um espetáculo que fala ao todo, que implica a história de centenas de anos dos afro-descendentes; neles estão representados todos aqueles que sofrem através da segregação, todos aqueles que estão sob um joelho sem poder respirar, todos aqueles que são jogados no chão vigiados por aqueles que detêm o poder policial do capital, todos aqueles que não podem levantar a cabeça acima da custódia dada pelos benefícios de uns poucos.

O corpo como um espaço de colonização, é escrito, é tramado, é enclausurado, é apagado, marcado como perda de autonomia, é um corpo que tenta gritar mas não pode gritar o que bilhões de corpos vivem, sentem, experimentam. 

Este vídeo mostra claramente o processo e as formas de colonização no mundo. Não conseguir respirar é uma sensação que abrange todo o corpo, respirar é viver, por isso que há uma relação direta entre afogar-se e ser afogado, entre sufocar e ser sufocado, sendo a demonstração de força que pode decidir sobre a vida.

Impedir a respiração é uma grande metáfora do que povos inteiros experimentam quando são sufocados, do que os países com seus joelhos ao redor do pescoço sentem, é uma grande metáfora dos povos aos quais é negada sua autonomia. Esta metáfora se soma à lógica metonímica deste território que é chamado de corpo em nome de todos os corpos. Pode-se ver aqui um ponto central do mural/cena: a despersonalização como a chave de toda colonização.

A estratégia de controle do protocolo policial é justamente fazer com que o sujeito perca sua autonomia até ser morto, e é nisso que consiste a política de colonização corporal: fazer com que o sujeito viva uma vida de consumo e diversão para que nada mais seja válido, para que nada mais possa ser sentido como tal, e nesta sinestesia você deixa para trás a autonomia. Uma estratégia que busca o retorno à vida pura, a dependência do consumo em massa, do imediatismo do desfrute da colonização do planeta interno pelos milhares de pandemias secretas e silenciosas que se espalham no mesmo corpo.

O mural que analisamos aqui foi tornado público para milhões de pessoas, que “tornou viral” um vídeo onde se constata que a intenção do protocolo policial é a despersonalização através do bloqueio da capacidade de autonomia, e é isso que nos leva a pensar em que consistem as novas segregações raciais. O que são os joelhos no pescoço de bilhões de sujeitos que estão fora, que estão à margem, que vagueiam de país em país, que se encontram em ser um migrante sua identidade?

A morte viralizada de George Floyd provocou indignação, fúria, raiva, tristeza, angústia e inúmeros protestos, ações coletivas e mobilizações. As ações coletivas, quase sempre, são profetas que anunciam a vinda de uma nova forma de entender o limite da vida em comum, estas ações coletivas estão dizendo algo mais que transborda a luta histórica do povo afrodescendente no país onde aconteceu, na verdade estas ações coletivas são planetárias. Estas ações coletivas são contra qualquer forma de estruturação de um poder onipresente sobre a possibilidade de ser uma pessoa, são a favor da autonomia, são a favor de que todos os seres humanos sejam considerados uma pessoa dentro e através da autonomia de construir a vida comunitária. São ações coletivas que enfatizam o que temos em comum, que gritam que você nunca mais deve ser compreendido por seu vizinho como alguém que pode ter seu pescoço abaixo do joelho de qualquer um. São ações coletivas que visam apontar, mais uma vez na história recente, que a revolução da esperança é possível.

Referência

DARWIN, Ch  (1897) The expression of the emotions in man and animals. New York: D. Appleton and Company.




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