Fios do tempo. Soberania, exceção e o desafio da reconstrução democrática: sobre Byung-Chul Han e o coronavírus – por Joanildo Burity

Seguindo com nosso debate sobre a pandemia de coronavírus, publicamos hoje as reflexões críticas de Joanildo Burity (UFPE) em resposta ao artigo “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”, publicado pelo filósofo coreano Byung-Chul Han no El País; artigo que, por sua vez, teceu críticas à análise feita pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek sobre os efeitos do coronavírus sobre o sistema capitalista e o regime chinês.

No presente texto, Joanildo analisa as teses de Byung Chul-Han em seu debate com Zizek e assume uma posição irrestritamente democrática, refletindo sobre os desafios da soberania para a reconstrução de nossas democracias e para a interrupção do avanço de regimes de exceção.

Publicaremos mais tarde um podcast e vídeo do República de Ideias em que Emmanuel Rapizo, Marco A. de Carvalho Silva e André Magnelli conversam sobre os artigos de Zizek, Byung-Chul Han e Jonanildo, não sem incluir no papo os textos de Daniel Chernilo, Paulo Henrique Martins e Saskia Sassen.

A. M.
Fios do tempo, 28 de março de 2020




Soberania, exceção e o desafio da reconstrução democrática:
sobre Byung-Chul Han e o coronavírus

Pernambuco, 22 de março de 2020

Esta curta intervenção está ancorada num texto recentemente (22 de março) publicado pelo filósofo alemão-coreano Byung-Chul Han, “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”, e reage de modo despretensioso à ambiguidade do seu texto. Meus comentários surgiram num grupo restrito de ex-alunos de uma disciplina de sociologia política que coministrei com meu amigo Paulo Henrique Martins. Não farei esforço de “melhorar” o comentário que circulei por email, apenas de contextualizá-lo e organizá-lo um pouco. Escusado dizer que não há nada sistemático nesta intervenção. Vários aspectos do texto de Byung-Chul deixarão de ser tematizados. Não estou escrevendo uma resenha. Que o/a leitor/a a recebam como lhe chega. Tentativa. Situada.

O argumento de Byung-Chul se organiza em dois marcados momentos com uma curta transição. No primeiro momento, ele exalta as vantagens da Ásia, em comparação com a Europa (ou, mais ambiciosamente, o Ocidente), no enfrentamento da crise do coronavírus nos três meses que já nos separam do seu início, em Wuhan, na China. O declarado tom desse primeiro momento é o de uma pedagogia da crise: que lições podem ser aprendidas do relativo sucesso oriental (basicamente representado aqui pela China, Coréia do Sul e Japão). O segundo momento, passa das lições da crise a uma retomada de temas conhecidos na obra de Byung-Chul, mas com um sentido de urgência conjuntural distinto: o de confrontar teses defendidas  pelo midiático e, por vezes, histriônico filósofo esloveno Slavoj Žižek, que anda defendendo o caráter revolucionário (anticapitalista) do vírus!

Tenho visto algumas reações positivas ao texto de Han, mais ancoradas em outros trabalhos, mais alentados e refletidos, publicados por ele (como A Sociedade do Cansaço e Psicopolítica) do que neste texto de ocasião, claramente polêmico, seja em seu objeto amplo – como oriente e ocidente enfrentam a ameaça – seja em um alvo em particular, Žižek. Meu comentário se atém ao artigo em tela. E, em relação a ele, na verdade acho que Byung-Chul pesa demais a mão no primeiro momento, parecendo transformar os modelos tecnocráticos orientais numa espécie de espelho no qual o ocidente deveria olhar para achar-se em falta. Creio que a ideia de vantagens comparativas é culturalmente condicionada (lição crucial da antropologia) e, portanto, no limite, irreplicável. Mas o autor parece proceder sem tempo para essas sutilezas.

O que o autor quer dizer ao ressaltar a vantagem oriental em termos da “mentalidade autoritária” confucionista, que ensina a obrigação de aquiescer, respeitar a autoridade (de quem manda ou de quem sabe), não questionar? O que quer dizer usar o Big Data e a vigilância cotidiana (digital e física, via câmeras e policiamento) como instrumentos de controles, ao invés do convencimento da população? Que relação tem essa postura aquiescente e vigiada com “o coletivismo”, em contraste ao individualismo ocidental? 

Não me parece que as virtudes aqui explicitamente afirmadas correspondem a nossas ideias de liberdade, igualdade, justiça, direitos humanos, accountability dos poderes perante a sociedade e hegemonia (coerção por meio do convencimento, ou aquiescência ativa revestida da possibilidade de coerção). Precisamos ser críticos do colonialismo ocidental – onde quer que e como ele se impôs e expropriou culturas, inclusive neste momento em que a globalização do saber médico ocidental (a chamada global health) procede pela uniformização das respostas culturalmente condicionadas, ignorando soluções locais. A própria ideia de lições a aprender com o oriente não escapa às lentes dessa lógica globocêntrica, que é em larga medida produzida no ocidente e tem seu controle ferozmente disputado pelo ocidente. E nessa esparrela Byung-Chul cai de quatro. Para um filósofo, ele deveria saber melhor.

As lições asiáticas que devem ser aprendidas precisam passar por nosso filtro, pois o viés etnocultural está presente em todas as sociedades humanas. É fato que a propagação do vírus ao redor do mundo, particularmente, nos países ocidentais deveu-se a respostas tardias, fundadas em leituras arrogantes sobre a soberania estatal. É fato que os regimes pós-democráticos europeus, estadunidense e brasileiro têm contribuído para intensificar as incertezas e a manipulação do pânico social, autorizando medidas de exceção que se multiplicam a cada dia. 

Nisso, o diagnóstico do autor é bastante equivocado: a soberania não morreu. Nem no oriente, a dar crédito à crônica do autor, que se entendida assim, é fidedigna quanto aos fatos, faltando-lhe, porém, a crítica – o pensamento. A soberania apenas não controla mais as fronteiras físicas com a mesma eficiência de antes (mas não seria isso um efeito especular sobre um passado que esquecemos? Quando e onde houve a soberania inconteste, totalitária?). O cotidiano de todas as nossas sociedades mostra até onde ainda pode ir, quando associada a práticas hegemônicas, a soberania estatal. As pessoas aceitam a exceção. Nós aceitamos a exceção. Em que isso difere do oriente louvado por Byung-Chul, senão no número de possíveis dissidentes? 

Aparentemente, sua aproximação de Agamben aqui, a admissão da exceção não vem a serviço de seus argumentos. Essa admissão é outra maneira de reconhecer que se a soberania encontra muitos anteparos construídos historicamente para contê-la, todos os momentos de crise recentes (e somos dolorosamente lembrados disso no Brasil pós-impeachment) têm-nos feito enxergar não os estertores desse paradigma, mas o que Laclau e Mouffe insistem em muitos de seus trabalhos: situações de desestruturação da ordem (simbólica, sociopolítica ou subjetiva) abrem “de novo” todas as possibilidades e a busca por uma delas que suture as brechas. 

O que emerge com clareza atordoante é a exceção e quem preenche o seu lugar é não apenas o “velho e bom Estado”, para horror dos neoliberais e seus papagaios neodebilóides, mas o poder soberano. Por maltrapilho que emerja, pelas mãos de seus próprios inimigos no poder, os populistas de direita, é esse estado que, com seus recursos legais, políticos e econômicos é invocado ao socorro da população. É mesmo quando parece um arremedo dos modelos hobbesiano e totalitário, que este locus clássico da soberania moderna conclama, recruta, proíbe, isola, pune. 

É importante e bem-vinda a observação de que a ciência (ou “os dados”) encontrou outra vez sua voz, mas não esqueçamos que trata-se da ciência em tempos de exceção, ela mesma predicada com a autoridade de quem pede que se aceite sem questionar, que se obedeça. Claro, ela dá explicações, ela apresenta estudos preliminares, gráficos, projeções, ela se ancora em experiências testadas do passado (ou assim nele projetadas). Esta ciência, que dá voz ao estado soberano neste momento, nada parece com a ciência dos/as médicos/as, enfermeiros/as e outras categorias de profissionais que atendem ou proveem cuidados aos infectados, em seus casos moderados ou graves. Essa gente vive com o coração na mão, ela mesma ameaçada de contaminação e morte (como infelizmente ouvimos a cada dia). Procede por tentativa e erro. O que nos revela que a confiança na ciência-que-dá-voz-ao-estado compartilha três marcas com este último: (a) concentra poder de enunciação e enforcement; (b) não consegue demonstrar que suas medidas de exceção decorrem pura e simplesmente dos dados ou saberes à mão; (c) a passagem entre as medidas de exceção e as ações no chão das ruas, casas, hospitais e os múltiplos lugares que vão sendo improvisados para responder ao desafio é contingente e tem a solidez do crédito que recebe de uma população cuja preocupação maior é ficar viva.

Byung-Chul, ao dirigir-se a seu segundo alvo, acerta mais o foco de sua intervenção. Serei muito breve aqui. Primeiro, percebe com clarividência que o apocalipcismo de Žižek tem a qualidade de quem há muito perdeu a capacidade de entender que sem agência humana – em sua multiplicidade, contingência e ausência de garantias teleológicas – não haverá “revolução”.  Žižek é um falso profeta contemporâneo. Suas boutades “analíticas” falham repetidamente em meio à profusão de livres associações quase delirantes. A verborragia revolucionária de Žižek precisa ser confrontada abertamente e este mérito Byung-Chul tem, neste momento. Segundo, nesta seção final do artigo, o autor deixa claro que as lições do enfrentamento da pandemia não são suficientes para fundar um diagnóstico do futuro. O objetivo de enfrentar o capitalismo global, normalizado pela aliança dos antidemocratas com os neoliberais, não será assistido por consequências previsíveis – e contrárias às de  Žižek. 

O capitalismo não desaparecerá por catástrofe, resiste Byung Chul. Tampouco serão massas ensandecidas por perdas e desespero que o sepultarão. Se tudo pode acontecer, o pior também: um aprofundamento da pós-democracia, da tecnocracia, da vigilância. O vírus não é portador de qualquer futuro discernível. E se nada fizermos, das cinzas da pandemia poderia surgir um mundo pior, não melhor. Mas é porque o vírus não é ator histórico que nos é deixado o maior desafio: navegar o estado de exceção com a determinação de impor-lhe novos limites tão logo saiamos da crise. Reconstruir a democracia em frangalhos, repondo a soberania popular (num sentido que melhor aprendemos de Laclau e sua concepção do povo do que de qualquer insurrecionalismo ou êxodo). Porque a lição até aqui tem sido que, desde o início dos anos 1990, a normalização da exceção vem subterraneamente avançando e criando precedentes para sua retomada quando novas crises se produzem. 


Joanildo Burity é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco; professor dos programas de pós-graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.


Como citar este artigo?
BURITY, Joanildo (2020), Soberania, exceção e o desafio da reconstrução democrática: sobre Byung-Chul Han e o coronavírus. Fios do Tempo (Ateliê de Humanidades), 28 de março. Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2020/03/28/fios-do-tempo-soberania-excecao-e-o-desafio-da-reconstrucao-democratica-sobre-byung-chul-han-e-o-coronavirus-por-joanildo-burity/


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