Pontos de leitura. Amar o humano, amar a Terra

Publicamos hoje o vídeo de leitura e comentário por André Magnelli do Pontos de leitura “Amar humano, amar a Terra”, de Michel Serres. Gravado no dia 17 de março de 2020, este vídeo não se propõe a ser uma interpretação da pandemia de coronavírus, mas a tangencia fazendo uma “leitura pandêmica”do que acontece conosco, ou seja, para todos os povos. Sua proposta é refletir eticamente, cruzando ecologia e política, antigos e modernos, contrato social e contrato natural.



No dia primeiro de junho deste ano de 2019, Michel Serres nos deixou aos 89 anos, legando-nos uma das mais belas e influentes obras filosóficas contemporâneas, construída no entrecruzamento de ciências sociais e humanidades, matemática e poesia. Não por acaso, em O Império do Sentido: a humanização das ciências humanas (1997), o  historiador François Dosse abriu seu relato da nova geração das humanidades francesas após o esgotamento do estruturalismo denominando-a de “a galáxia dos discípulos de Michel Serres”.

O Ateliê de Humanidades publica um Pontos de leitura em homenagem a Serres. Recomendando que se aprecie, também, o texto que publicamos recentemente no dia 15 de maio (A religião como o cuidado do tempo; ou por que não negligenciar os elos do mundo), desejamos uma boa apreciação do que se segue abaixo, sobre o amor dos humanos e da humanidade, da terra e da Terra.

Boa leitura! 

Pontos de leitura, 03 de junho de 2019


Homenagem a Michel Serres (1930-2019)
Amar o humano, amar a Terra

Sem amor, nada de elo nem de aliança. Eis enfim as duas vezes duas leis.

Amai-vos uns aos outros, eis a nossa lei primeira. Nenhuma outra, há dois mil anos, soube ou conseguiu evitar para nós, a não ser por raros momentos, o inferno na Terra, Esta obrigação contratual se divide em uma lei local que nos pede para amar o próximo e uma lei global que exige que amemos a humanidade, pelo menos, se não acreditamos em Deus.

Impossível separar os dois preceitos, sob pena de ódio. Amar somente aos próximos ou semelhantes só leva à equipe, à seita, ao gangsterismo e ao racismo; amar os homens, explorando os próximos, é a hipocrisia frequente dos moralistas pregadores.

Esta primeira lei faz silêncio sobre as montanhas e os lagos, pois ela fala aos homens dos homens, como se não existisse o mundo.

A segunda lei nos pede para amar o mundo. Esta obrigação contratual se divide nessa velha lei local que nos prende ao solo onde repousam os nossos ancestrais e em uma nova lei global que nenhum legislador, que eu saiba, nunca escreveu, uma lei que exige de nós o amor universal pela Terra física.

Impossível separar os dois preceitos, sob pena de ódio. Amar a Terra inteira, saquendo a paisagem circundante é a hipocrisia frequente dos moralistas que restringem a lei aos homens e à linguagem da qual eles têm o uso e o domínio; amar apenas o seu solo provoca inexpiáveis guerras devidas às paixões da propriedade.

Sabíamos às vezes amar o próximo e, muitas vezes, o solo, aprendemos com dificuldade a amar a humanidade, outrora tão abstrata, mas que começamos a encontrar com maior frequência, e então devemos aprender e ensinar à nossa volta o amor pelo mundo ou pela nossa Terra, que agora podemos contemplar por inteiro.

Amar os nossos pais, natural e humano, o solo e o próximo, amar a humanidade, nossa mãe humana e nossa mãe natural, a Terra.

Impossível separar essas duas vezes duas leis, sob pena de ódio.

Para defender o solo, nós atacamos, odiamos e matamos tantos homens, que alguns dentre eles acreditaram que essas matanças puxavam a história. Inversamente, para defender ou atacar os outros homens, que nós saqueamos a paisagem e nos preparávamos para destruir toda a Terra. Logo, as duas obrigações contratuais, social e natural, têm entre si a mesma solidariedade daquela que liga os homens ao mundo e o mundo aos homens.

Essas duas leis são uma só, que se confunde com a justiça, natural e humana ao mesmo tempo, e que pedem juntas que cada um passe do local ao global, caminho difícil e mal traçado, mas que devemos abrir. Não se esqueça nunca de onde você parte, mas deixe esse lugar e junte-se ao mundo. Ame o elo que une sua terra e a Terra e que faz parecerem-se o próximo e o estranho.

Paz para os amigos das formas e para os filhos da Terra, para os que se prendem ao solo e para os que enunciam a lei, paz para os irmãos separados, para os idealistas da linguagem e os realistas das próprias coisas, e que eles se amem.

Não há nada de real  senão o amor e lei senão a dele.

Michel Serres. Amor. In: O Contrato Natural (Editora Nova Fronteira), p. 61-63.


Fonte da Imagem: Michel Serres em foto de fevereiro de 2018 Foto de JOEL SAGET / AFP

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por Anders Noren

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