George Steiner (1929-2020), o último leitor – por Alberto L. C. de Farias

Recebemos com tristeza, na noite do dia 03 de fevereiro, a nota de falecimento do filósofo, escritor, ensaísta, crítico literário e educador George Steiner. Tendo exercido uma forte influência sobre a concepção de vida intelectual, de leitura e de educação do Ateliê de Humanidades, a ponto de figurar como epígrafe do pequeno “Manifesto Editorial” que abre todos os nossos livros, fazemos hoje uma publicação no Fios do Tempo em sua homenagem. Publicamos, primeiramente, um artigo de Alberto L. C. de Farias, livre-pesquisador e coordenador editorial do Ateliê de Humanidades, que foi escrito sob o impacto da notícia do desaparecimento. Aproveitamos também para disponibilizar um excerto de nosso “Manifesto” editorial, convictos de que, se Steiner e outros intelectuais de sua estirpe nos deixam, o fio da tradição cultural por eles representada deve continuar a ser tecido por nós, sob pena de romper-se em tempos de ascendente barbárie.


George Steiner (1929-2020),
o último leitor

Itabuna (BA), 04 de fevereiro de 2020

O New York Times divulgou na noite desta segunda-feira, 03/02/2029, a notícia do óbito, em sua residência em Cambridge, de George Steiner, aos 90 anos de idade. Com Steiner se vai muito da memória viva da tradição judaico-cristã, da inteligência, da sabedoria e da experiência intelectual dos judeus da Europa central da primeira metade do século XX. 

A figura intelectual e moral de Steiner é gigantesca. Tendo sido educado nas línguas clássicas, hoje quase que completamente esquecidas pelos meios oficiais, teve desde cedo um acesso direto às obras e autores fundamentais da civilização greco-latina. Aos seis anos recebeu do pai, um intelectual frustrado empurrado pelas circunstância sociais e materiais para o ramo financeiro, a instrução em grego para saber “o que acontecia na Ilíada”. Na longa conversa transcrita com o filósofo iraniano Ramin Jahanbegloo, traduzida para o português com o título de George Steiner: À Luz de Si Mesmo, Steiner narra alguns detalhes dessa educação doméstica, tais como a rotina de lições noturnas dos clássicos gregos tomadas por um pai exausto de um dia de trabalho rentável, que pretendia para o filho algo mais elevado que as profissões geralmente destinadas aos judeus da Europa Central e Ocidental. As circunstâncias étnicas fortaleceram em seu espírito a convicção do estudo de línguas, expressa por ele na forma inteligente de uma quase-máxima, que atualiza-se sempre que o mundo se torna, como agora, um lugar mais perigoso para se viver: “cada língua que se aprende é uma liberdade que se conquista”. 

E foram a língua (a palavra) e a leitura desde sempre um dos centros de gravidade no extenso universo de suas preocupações intelectuais e espirituais. Em Linguagem e silêncio, um dos seus livros de melhor fortuna, tomou para si a tarefa de pensar a crise da palavra, o seu esgotamento. Mas também o lugar do silêncio como condição para acessar Kant ou a Bíblia. O ato da leitura possui para Steiner uma metafísica que ele explora em diversos textos. Nessa atividade, em grande parte solitária, o silêncio é a primeira chave para a Formação (Bildung). O acesso à tradição, a outra. São antológicas as suas páginas sobre Leon Trótski, um judeu como ele, um humanista como ele, tornado anátema em seu próprio país, e que nos serve aqui como exemplo de uma erudição rara: Steiner consegue conectar a trajetória político-biográfica de Trótski às correntes profundas do destino Ocidental, ligando sua vida ao drama mitológico de Níobe.

Como uma espécie de humanista fora do seu tempo Steiner alimentou a utopia de uma vida intelectual não-especializada e orgânica. No primeiro caso, foi um dos últimos exemplares polímatas que nossa era conheceu: suas preocupações vão da filologia às ciências naturais, passando pela teologia, pela história, pela filosofia, pela crítica literária, da qual fez profissão. Seus críticos nunca o perdoaram por isso e Steiner foi muitas vezes apontado como um “jornalista”, um simplificador de ideias complexas, ao que respondeu, sempre elegantemente, apontando as dificuldades da conversão da filosofia numa técnica. No segundo caso, a obra e o pensamento de Steiner caracterizam-se por uma forte dimensão ética: após as experiências das duas Grandes Guerras, em particular a segunda, houve um rompimento na cultura e, à maneira frankfurtiana de Theodor Adorno, alerta para o fato incontestável de que a Cultura não pôde evitar a Barbárie e muitas vezes conviveu relativamente bem com ela, quando “homens que à noite cantavam Schubert, tocavam Mozart e liam Rilke eram capazes de torturar na manhã seguinte”. Ainda para ele o pensamento não pode ser uma profissão, um mero meio de ganhar a vida, mas deve ser uma forma de vida. Nesse aspecto que se refere à organicidade entre vida e obra, vida e pensamento, cabe lembrar a sua singular ênfase no papel da memória, na fixação de versos por exemplo, que uma vez incorporados ninguém poderá lhe subtrair. Há uma dimensão física e espiritual na palavra que a educação judaica de Steiner não o deixou escapar. 

Como um mestre, Steiner insistiu na necessidade da leitura de autores e textos no original, condenando o neoescolaticismo das letras no mundo contemporâneo, caracterizado pela profusão da leitura de comentadores, intermediários em sua opinião dispensáveis entre os clássicos e nós, leitores. Nesse caso, a figura exemplar mais próxima de nós foi para ele a de Erich Auerbach, que escreveu o seu Mimesis em condições adversas, sem acesso às fontes, chegando a reconstituir de memória, na sua famosa análise da Odisseia, uma sequência inteira de Odisseu. 

Se uma época, ao contrário de um século, não é um par de anos, uma sequência ordenada de décadas, datas, fatos e acontecimentos, sendo antes uma unidade moral e espiritual, podemos dizer que com Steiner perdemos mais um elo com a época histórica anterior. Perdemos também, aqueles que amam o conhecimento, um velho amigo, pois se São Tomás de Aquino estava certo ao definir a amizade como sendo o querer as mesmas coisas e o rejeitar as mesmas coisas (idem velle, et idem nolle), teremos sempre em Steiner a figura do filos, com quem poderemos ter todas as vezes em que o silêncio se fizer compreensão. 

Alberto L. C. de Farias
É livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades, co-editor do Ateliê de Humanidades Editorial e doutorando em sociologia (IESP-UERJ)


“Manifesto” editorial do
Ateliê de Humanidades

Os livros são a chave de acesso para nos tornamos melhores. Sua capacidade de provocar essa transcendência suscitou discussões, alegorias e desconstruções sem fim. As implicações metafóricas do ícone hebreu-helenístico do Livro da Vida, do Livro da Revelação, da identificação da divindade com o logos, são milenárias e não têm limites. Desde os sumérios, os livros foram os mensageiros e os cronistas do encontro do homem com Deus. Muito antes de Cátulo, eles foram os mensageiros do amor. Acima de tudo, assim como algumas obras de arte, encarnaram a ficção suprema de uma vitória possível sobre a morte.

George Steiner – Aqueles que queimam livros

Os livros nunca foram, nem mesmo na tradição judaico-cristã, objetos autojustificados por excelência. À desconfiança socrático-platônica da escrita somou-se a do Cristo e, ao longo dos séculos e por razões completamente distintas, a daqueles que queimam livros. Se juntarmos a essas exigências outras de natureza mais contextual e contemporâneas, ver-se-á porque nos sentimos na iminência de algumas palavras acerca das razões que nos mobilizam a, em plena era “da morte e da morte” de Gutemberg, incursionar pelo trabalho editorial. Essas razões são necessariamente intelectuais e, por isso, possuem uma acentuada dimensão ético-política. 

O livro que o leitor tem diante de si é parte de uma iniciativa que vem a se somar a algumas outras do inconstante mercado editorial brasileiro. Como um projeto editorial, o Selo Ateliê de Humanidades guarda algumas especificidades que o tornam mais do que um simples empreendimento comercial, ou seja, mais do que uma empresa voltada para a edição e o comércio de livros – e isso em vários sentidos. Em primeiro lugar, o Selo distingue-se por seu caráter de veículo de publicação de pesquisas realizadas no interior de uma instituição de livre-estudo, pesquisa, escrita e formação – o Ateliê de Humanidades. Em segundo lugar, pela evidente natureza pública e não estritamente comercial do Ateliê e do seu Selo. Caracterizando-se por ser uma iniciativa de economia plural, bem própria às experiências contemporâneas de trocas de dons e economia solidária, nossas atividades são concebidas por ideias e valores fortes, tendo o intuito de realizar uma atuação pública e uma intervenção cultural, visando a formação de públicos, o esclarecimento coletivo e o fortalecimento de uma cultura democrática. Em terceiro lugar, por causa do seu esforço crítico de conexão com o tempo presente, o que já orienta os trabalhos desenvolvidos pelo Ateliê e que se estende, agora, ao nosso editorial. 

O Selo é primariamente o meio de publicização daquilo que é produzido como reflexão e pesquisa no interior dos quadros do Ateliê. Sendo o Ateliê de Humanidades um espaço voltado para o desenvolvimento do estudo e da formação com vistas à pesquisa, ele é uma instituição de pesquisa liberal, no sentido que essa palavra tem em sua origem etimológica e semântica, isto é, “livre”, em oposição ao “iliberal” relativo às artes ensinadas ao homem preso e controlado pelas “guildas” (feudais, burocráticas ou produtivistas). Por isso, o Selo Ateliê de Humanidades diferencia-se do mercado editorial em geral por estar organicamente vinculado a uma instituição de pesquisa e formação, diferentemente do que ocorre com as editoras estabelecidas, mesmo as universitárias. É a partir da pesquisa tomada como vocação da nossa instituição, com seus problemas delineados nos Planos de Convergência, que o Ateliê de Humanidades Editorial estrutura todas as atividades do Selo, dividindo-as em temas, séries e coleções. 

Dado o caráter público em que se funda a concepção ético-política do Ateliê, o seu Selo orienta-se por uma preocupação cultural com a formação de um público, diferentemente das tendências do mercado editorial como um todo, que se orienta normalmente por nichos mercadológicos e demandas pré-estabelecidas. Considerando que a formação do público intelectual e cultural no Brasil possui certo déficit bibliográfico e temático, pensamos que o Ateliê, através do seu Editorial, pode vir a cumprir um papel na formação de um público tornando acessíveis autores e textos clássicos e contemporâneos. 

Além disso, se nos interessa fazer uma contribuição para a elevação do nível do debate na esfera pública, não menos importante é o resgate de elementos de uma cultura clássica, sobretudo aquela que está atrelada ao ato fundamental de ler, o qual, segundo o autor de nossa Epígrafe, George Steiner, tornou-se atualmente “uma ‘ocupação’ universitária cada dia mais especializada”, uma forma de “apanágio de poucos, uma memória distante de homens de outras épocas”; e, por isso, para a maior parte dos adolescentes resta não muito mais do que uma incapacidade de “ler em silêncio”, uma perda da fundamental intimidade e “solidão que permite um encontro profundo entre o texto e sua recepção, entre a letra e o espírito”; experiência que se tornou “uma singularidade excêntrica, psicologicamente e socialmente suspeita”. Daí, conclui Steiner, resta-nos uma ”espécie de amnésia planificada” que prevalece atualmente nas escolas, mas que está presente também nas nossas universidades demasiado ocupadas para ler, estudar e pensar.

Portanto, nossa instituição e nossas atividades editoriais se guiam pelo sentimento de necessidade de liberação do pensamento, de cultivo da leitura e de difusão da cultura para além do espaço dos iniciados e profissionais. O pensamento no Brasil, mas não só nele, foi excessivamente academicizado nos limites das universidades, como se não houvesse vida acadêmica fora do discurso esotérico, técnico, às vezes de quase novilíngua. O Ateliê se propõe a cumprir um papel, ainda que mínimo, na tarefa de liberar as ideias para fora das universidades com um exercício de intelectualidade e de formação cultural. 

Com o Ateliê de Humanidades Editorial, braço editorial de nossa instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades, reforçamos assim nosso compromisso com a reflexão sobre o tempo presente, com a produção e apresentação de pesquisas de excelência e com a abertura de novas perspectivas para o debate acadêmico no Brasil. Desta forma, buscamos entregar nossos trabalho editorial ao público, movidos por uma ética do trabalho bem feito e, tal como Steiner, embebidos pela crença de que os livros podem ser uma chave de acesso para nos tornamos melhores, desde que, claro, guiados, como estamos, pelo compromisso com a verdade, a liberdade de pensamento, a probidade intelectual, a excelência acadêmica, o cuidado editorial, o esclarecimento público e a difusão e tradução de conhecimento especializado ao público leigo.

Itabuna & Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2019

Alberto Luis Cordeiro de Farias
André Magnelli


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