Artigo. O fim do ciclo do Antropoceno, por Paulo Henrique Martins

Disponibilizamos hoje, no Fios do tempo: análises do presente, o artigo de Paulo Henrique Martins sobre “o fim do Ciclo do Antropoceno”. Com sua costumeira amplitude de espírito e compreensão, o autor reflete sobre o sentido do “Antropoceno” e o seu possível fim, partindo das representações de ciclo de nascimento, vida e morte presente nas distintas cosmologias antigas até chegar no vislumbre de novas heterotopias. Desejamos uma excelente leitura dominical.


O fim do ciclo do Antropoceno

Fios do tempo, 17 de novembro de 2019

As grandes cosmologias antigas representam a vida como ciclos recorrentes. No hinduísmo, estes são personalizados por três trindades divinas formadas por duplas opostas e confluentes que organizam o universo: Brahma-Saravasti, expressando a criação; Vishnu-Lakshimi, a manutenção; e Shiva-Parvati, a destruição das aparências. Na cosmovisão taoísta, a abertura e fechamento do ciclo cósmico também obedece a três movimentos: Zhen-Xun, a expansão; Kan-Li, perenização; e Gen-Dui, finalização e contemplação do realizado. Na tradição cristã, este ciclo se realiza entre o Velho e o Novo Testamento, entre a Palavra da criação e o Evangelho de São João, sua grande apoteose.

Estas representações da vida como ciclos não são apenas invenções míticas. As histórias dos grandes Impérios – persa, grego, romano, inglês, norte-americano etc. – testemunham a verdade dos ciclos de nascimento, vida e morte. Estes são, aliás, os destinos de todos nós, humanos.

A modernização ocidental criou a representação de um tempo linear, progressivo e fundado na ilusão de recursos materiais inesgotáveis. Neste período, que está sendo denominado hoje de Antropoceno, a intervenção humana sobre o ecossistema se tornou mais intensa, sobretudo a partir da Revolução industrial. Este ciclo está se exaurindo por dois motivos: um deles, o crescimento gigantesco dos processos de exploração e de consumo de mercadorias; o outro, o esgotamento das fontes de matérias-primas do planeta. As disputas ansiosas das castas dominantes por poder e riqueza aceleram o fim do ciclo.

O Antropoceno foi um evento, explica Dipesh Chakrabarty, em que presenciamos a transformação de nossa espécie de simples agente biológico em força geológica colossal que põe em risco a sustentabilidade planetária. Se refletimos serenamente sobre os fenômenos recentes das queimadas na Amazônia ou o vazamento de petróleo nas praias do Nordeste, no Brasil, entenderemos o curso dos eventos. A superação do ciclo do Antropoceno implica em se conceber uma nova relação entre o humano e a natureza, transfigurando a experiência para liberar uma utopia mais complexa: amorosa, sustentável, convivial e justa.

Paulo Henrique Martins

Professor titular da UFPE
Ex-presidente da ALAS
Livre-pesquisador parceiro do Ateliê
Autor do livro “Itinerários do dom: teoria e sentimento” (2019)

* Artigo publicado originalmente no Jornal O Povo, 02/11/2019

Fonte da imagem: foto tirada na chácara do autor por André Magnelli, 31 de agosto de 2019.


 

2 comentários em “Artigo. O fim do ciclo do Antropoceno, por Paulo Henrique Martins

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  1. O artigo nos desperta à consciência do processo destrutivo em curso. Indago-me: tal ação deletérea do ser humano não faria parte do inevitável ciclo de nascimento, vida e morte do planeta?

    1. Caro Comba. Sua questão é muito pertinente. Quando o humano se torna uma força geológica muito poderosa dispondo de tecnologias de exploração e de destruição de alto potencial e, ao mesmo tempo, não conseguindo mobilizar um dispositivo bioético minimamente capaz de frear as paixões de consumo e de acumulação, então temos este resultado terrivelmente surpreendente. Nossa precariedade e nossas limitações existencial, moral e política não permitem que a maioria da população entenda a complexidade do ciclo. Queimadas, enchentes e furacões aparecem como algo ainda distante. No meu entender, há um esgotamento das capacidades de expansão no mundo material, exigindo uma mudança de paradigma que valorize a experiência interior. Somente assim é possível liberar um novo método de entendimento dos movimentos paradoxais dos afetos e sentimentos para repensar a moral coletiva e a individual e a política da solidariedade. Um abraço

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