Pontos de leitura. Fome de amor e alegria – por Herman Hesse

Neste final de semana pré-pascoal, revisitamos dois Pontos de Leitura do Ateliê de Humanidades, retirados do livro A arte dos ociosos, do escritor e pintor alemão Herman Hesse. “Fome de amor e alegria” (1907) e “Riqueza Interior” (1915). Eles são uma preciosa leitura em tempos de confinamento!

Ambos estão em áudio leitura e, também, em vídeo com leitura e comentários por André Magnelli. O vídeo de comentários deste postestará disponível no youtube mais tarde.

Bom achado!



Velha cantiga

A celebração das grandes festas universais representa, para o cidadão comum de nossa época, a única concessão ao ideal. Festeja o Ano Novo, que lhe lembra a transitoriedade da vida, a rápida fuga do tempo, balançando a cabeça, se cético, ou suspirando, se sentimental. A Páscoa e Pentecostes celebra como festas da primavera e do renascimento da natureza. Finados, como uma visita às sepulturas de parentes e amigos. O Natal, consentindo-se um ou vários dias de descanso e dando à mulher um vestido e aos filhos brinquedos de presente. Alguns conseguem sentir também uma passageira e resignada alegria com o júbilo das crianças, enternecer-se na contemplação da árvore de Natal, radiante de luz, que os leva a lembrar-se saudosamente da infância. Ao ver a alegria dos filhos, ao receber presentes, pensará: Sim, alegrai-vos e gozai o instante feliz: em breve a vida há de vos roubar vossa alegria e inocência.

Ele não pergunta: “Por que isso acontece? Por que considero natural que a ‘vida’ seja um poder maligno que, do ‘paraíso da infância’, nos impele à culpa, à decepção e ao trabalho enfadonho? Por que devem a alegria e a inocência, infalivelmente, ser sacrificadas a essa vida?”.

No dia em que realmente se fizer essa pergunta, terá deixado de ser um homem comum e dará o primeiro passo para uma nova vida. E se prosseguir nesse caminho, verá que, daí por diante, todos os dias de sua vida serão mais valiosos, mais fecundos e mais significativos do que o haviam sido todos os dias feriados, com o seu brilho transitório e o seu fraco e meio insincero poder evocativo. E reconhecerá que não devia atribuir à “vida” a culpa pela morte de sua alegria, sua inocência e seus ideais, e que seria injusto e grotesco acusar a vida por esse mal. Havia-se enganado a si mesmo.

Não existem a “necessidade” e a “marca da época” obrigando as pessoas a preferir os bens materiais aos espirituais, os transitórios aos eternos. Quem aceitou essa decisiva escolha não deve culpar nada e ninguém a não ser a si mesmo. 

“Bobagem”, dirão vocês, “nossa época, simplesmente, não é idealista e não podemos modificar nem a ela nem a nós”.

A velha desculpa de sempre que todos ouvem dizer e repetem: e em que todos acham que devem acreditar. Nossa época não é ideal! Por que não? Porque a “corrida do ouro”, a ânsia pelo enriquecimento, é hoje mais ostensiva, brutal e desgraçada do que antigamente? Mas resta saber, e é o que importa, como, mais tarde, se há de julgar a nossa época. Acredito que não se há de dizer: foi a época em que os preços do carvão eram altos, em que se inventou o colchete de pressão e se viram as últimas diligências e os primeiros bondes elétricos. Antes, acredito que dirão: foi o tempo de muitos poetas, de muitos movimentos religiosos. Tudo aquilo que hoje, na opinião de vocês, não passa de agradável entretenimento e de superfluidade, sim, que alguns de vocês chamam, simplesmente, de extravagância e fanatismo, há de sobreviver e existir e ter valor e mérito, quando vossa luta, séria e encarniçada, pelo dinheiro tiver, já há muito, sido esquecida.

Sabeis o que é o Natal, a festa do amor divino, filial e fraterno? A festa da alegria? Não vedes no amor e na alegria, os altos poderes, para cuja glorificação celebrais festas sacras, patrocinadas e protegidas pelo Estado? Mas como se goza hoje o amor e a alegria? Para poder desfrutar, por alguns dias ou durante algumas semanas, um pouco de alegria, viveis três quartas partes de nossa vida no pó e suor de um triste e duro trabalho, que não vos enobrece, mas deprime e entristece. E, quando cansados do trabalho, a fome pela luz e a alegria vos domina, a maioria não consegue encontrá-las em cassinos, em botecos. E o amor? Quem dispende dez a doze horas no emprego, duas a quatro horas no boteco ou em outras diversões, tem pouco tempo para se dedicar a mulher e filhos, irmãos e irmãs.

Um estranho, mas simples segredo da sabedoria de vida de todas as épocas é que toda dedicação desinteressada e participação de amor nos enriquece, enquanto a luta pela riqueza e pelo poder nos rouba forças e nos depaupera. Já os hindus o sabiam e ensinavam, e também os sábios gregos, e Jesus, cujo nascimento celebramos no Natal; e, desde então, milhares de sábios e poetas, em obras que sobrevivem ao tempo, enquanto passam os impérios e os reis são esquecidos. Podeis ficar com Jesus ou Platão, com Schiller ou Spinoza, em todos se encontrarão como derradeira base da sabedoria, que nem o poder nem a riqueza nem o conhecimento trazem a felicidade, mas apenas o amor. Todo altruísmo, toda renúncia por amor, toda caridade ativa, todo abandono do eu parecem uma auto-espoliação, um auto-sacrifício; no entanto, são um enriquecimento e o único caminho que nos leva para a frente e para o alto. Dizeis, é a velha cantiga de sempre. Sou talvez mau cantor e mau pastor, que não vos consegue convencer da verdade. Mas se verdades não envelhecem, permanecem verdadeiras em todos os tempos e em toda a parte, podendo tão bem ser pregadas no deserto, cantadas num poema ou impressas em jornal.

Herman Hesse, Velha Cantiga (1907). In. A Arte dos ociosos (Record, 1973), p. 78-9.

Achado de André Magnelli



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