No reino de Momo, rir é coisa séria

De segunda a sexta, José Maria de Jesus sai às 6h de Nilópolis para trabalhar na av. Rio Branco. Pai de duas crianças, ele vende bolsas femininas como camelô. José torce pela Beija-Flor. “Para mim, o mais bonito desfile da nossa escola de samba foi Ratos e Urubus, com Joãozinho Trinta, em 1989”, lembra com orgulho. “Eu tinha 18 anos quando desfilei, ficamos em segundo lugar”. Naquele ano, a Beija-Flor foi censurada.

Raríssimas foram as escolas que atravessaram a Sapucaí ao som de críticas políticas. A última a desfilá-las foi a São Clemente; porém, por causa de um acordo quando César Maia foi prefeito, a desobediência carnavalesca foi domesticada, e o rei Momo da São Clemente passou a beijar a mão de quem manda e desmanda no Rio de Janeiro, o político.

Porque sabe que a luz retém sob ela a farsa do poder, que é de dia que a face verdadeira do governante se oculta, o reino de Momo brinca à noite para desmascarar com a fantasia o que o dia esconde. Entretanto, a força política do Carnaval de hoje, comparada à da Idade Medieval, é bem mais débil para desmascarar a face cínica dos governantes, tão bem-comportada à luz do dia. Quando digo perdeu sua força política, refiro-me à força de sua linguagem, quer dizer, de seus conceitos, por exemplo, à força política do riso.

Em “Mitologia Grega” (volume 1), Junito de Souza Brandão explica que a palavra grega “Mômos” talvez se relacione ao verbo “mokân”, que significa “ridicularizar, escarnecer”. Momo, portanto, é aquele cujo “riso escarnece”, isto é, em seu reino, o riso, porque retira a carne, remove a aparência a fim de rebaixar o poder. No final do século 16, registra-se a palavra “Momo” no dicionário de língua portuguesa como relacionada ao grego “mimos”, passando também a significar “imitação”. O rei da folia, portanto, é aquele que imita. Mas quem Momo imita? Ora, por ser rei, Momo imita outro rei, o sério, o governante, aquele que representa o poder com aparência séria. Imitar, sabemos, é uma forma de brincar com a imagem original.

Os súditos riem no reino de Momo porque o riso carnavalesco remove a aparência do poder oficial, o mesmo poder que entrega a esse regente da alegria a chave da cidade para que a porta noturna se abra a fim de que seja atravessada pelos brincantes.

Gordo e sem pelo no corpo, Momo representa o recém-nascido, a criança, cuja natureza é “brincar” com a realidade, sendo que “brinc-“ vem da raiz “vinc-“, que significa “ligar, unir, encadear”. Brincar forma, portanto, vínculos, o que permite dependência entre as partes, quer dizer, cada súdito não existe por ele mesmo, mas em relação a outro. Nesse sentido, Momo não exerce em seu reino o poder autocrático, mas um poder que se sabe relacionado a seus súditos. O poder momesco não só reconhece o outro como também reconhece as diferentes manifestações em seu reino. Brincar, nesse aspecto, não só une os iguais com também une as diferenças. A criança é assim: brinca com negros, com brancos, com religiosos, com idosos, com cegos, com feios, com belos; porém, quando o poder oficial se finge de sério para representar o sonho de justiça social, Momo brinca com ele para desmascarar sua face.

Se o lugar onde moramos é desajustado socialmente por causa de políticas públicas que aparentam ser justas, sempre pronunciadas por homens públicos com seus rostos sérios e amigáveis, Momo, tal qual uma criança, desorganiza a realidade para extrair dela suas falhas, falhas tão bem ocultadas pela ordem oficial.

Desde que Marcelo Crivella se tornou prefeito da capital, Momo brinca com dificuldade: dos R$ 2 milhões antes do bispo, cada escola de samba neste ano recebeu R$ 250 mil. Se hoje há bem menos verba pública, por outro lado isso implica bem menos dependência com o prefeito, o que possibilita, por meio da arte do Carnaval, uma desobediência cívica que brinque, por exemplo, com religiosos políticos, um deles, o pastor Silas Malafaia, acusado de desonestidade administrativa.

Segundo denúncia, o prefeito Eduardo Paes aplicou, sem licitação, R$ 1,6 milhão na Marcha para Jesus, em 2012. A juíza Mirela Erbisti escreveu: “Há indícios suficientes da participação de cada um dos demandados na prática do ato ímprobo”. Se a juíza agiu de forma séria e se o pastor irá recorrer, resta ao rei Momo recorrer ao riso contra aqueles que se fingem de sérios, porque disse o Senhor: “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes”.

Rir é a forma mais séria de lutar contra o poder.

É livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e professor de filosofia


Fonte da imagem: Detalhe da pintura do teto do Teatro Graslin, sala de ópera de Nantes: El dios Momo. Obra de Hippolyte Berteaux.

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por Anders Noren

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