Da comensalidade à convivialidade – por Tássia Carvalho

Da comensalidade à convivialidade:
por um contrato de cum vivere

Tássia Carvalho

Não seria exagero dizer que as interações à mesa nos trouxeram até aqui. Isso é evidente tanto se partimos da perspectiva da família nuclear, quanto da importância fundamental da comensalidade para o processo de constituição das sociedades, das mais primitivas às mais complexas. Primeiro porque, como defendia Câmara Cascudo (2011), o ato de alimentar-se que é, em essência, o imperativo de natureza mais selvagem do humano, também é aquele que incorporou a maior quantidade de tabus sociais. Segundo, porque os sistemas de símbolos presentes nas interações à mesa revelam muito mais que apenas saciar desejos. A mesa carrega consigo o mais alto grau de tradições de uma sociedade, transparecendo também ali relações de classe, status e poder. Se em algum momento comeu-se apenas para suprir carências nutricionais, esse tempo é tão remoto que dificilmente poderíamos considerar-nos humanos. Contudo, presenciamos pouco a pouco o caminhar para um “resgate” desse tempo não-humano no qual o ato de comer em comunhão vai perdendo centralidade e tornando-se cada vez mais escasso e o valor nutricional daquilo que se come passa a ser visto como aspecto central. Essa perda de centralidade da comensalidade é, em diversos aspectos, uma consequência direta do processo de intensificação do modelo capitalista de sociedade que tem no controle do tempo a forma mais eficiente de controle dos indivíduos. Na lógica do “tempo é dinheiro”, comer à mesa torna-se um luxo dispensável. O convivialismo, enquanto tentativa de transformação concreta da sociedade, não propõe um modelo pronto (como nos foram vendidos o socialismo e o liberalismo, por exemplo), mas visa a agregar diversas experiências para a construção de uma sociedade pluriversalista. Assim, o resgate à importância da comensalidade para as interações e cooperação entre os indivíduos, contribui como um aspecto que se incorpora a muitas outras formas de construção dessa nova sociedade que perpassa por um processo de reconstrução integral tanto do modelo de produção e circulação de alimentos, quanto da sua própria forma de preparo e consumo.

Da comensalidade…

Não por acaso o marco fundamental do surgimento da cozinha, o domínio do fogo, é também o marco fundamental do surgimento da civilização. O ato de cozinhar a carne favoreceu o hábito de fazer as refeições em comum, possibilitando a efetivação da divisão social do trabalho e tornando mais complexos os processos de organização em grupo (Perlès, 1998). Se a relação entre transformação social e alimentação é nítida nesse processo, cabe lembrar que os grandes marcos revolucionários na história da humanidade coincidem com grandes transformações nas formas de produção alimentar. Primeiro o domínio do fogo, depois o domínio da agricultura que, notadamente, demandava um sofisticado nível de interação social e repartição e consumo em comum dos alimentos produzidos. Esse, contudo, não é o único aspecto relevante no processo de constituição das sociedades humanas. A forma como a alimentação relaciona-se com o gosto, já na pré-história, revela que a predileção por determinadas formas de preparo ou tipos de alimentos foram essenciais para a constituição de identidade e origem de um pensamento simbólico, i.e. da cultura.

Desse passo à hierarquização dos indivíduos e alimentos, à ritualização, à sacralização e à distinção social, um longo caminho foi percorrido. À necessidade biológica, foi-se incorporando uma série de tabus em torno do alimento. O ato de comer em comum passou a representar não apenas uma questão de sobrevivência, mas um símbolo de aliança e cooperação. “Companheiro” (do latim cum panis) é, essencialmente, aquele que partilha o pão (Cascudo, 1983: 42). No período clássico, por exemplo, os banquetes eram interpretados como forma de distinção entre os “civilizados” e os “selvagens” ou “bárbaros”. De acordo com Montanari (1998: 109), “a mesa funciona não apenas como agente de agregação, mas também de separação e de marginalização. O fato de ser aceito na mesa comum ou de ser excluído dela tem um forte significado (…)”. Os banquetes (ou conviviums), comuns em todas as culturas (antepassadas e presentes), podem ser percebidos como expressão máxima da comensalidade e carregam consigo um processo simbólico de trocas e construção de laços entre grupos (Joannès, 1998). Casamentos, aniversários, celebrações de acordos, festejos religiosos e toda espécie de rito de passagem estão sempre associados ao ato de comer em comum, mas a importância da mesa não se faz apenas em ocasiões especiais.

O processo de socialização dos indivíduos também passa, necessariamente pela mesa. Michel Maffesoli (2002) atribui à socialização em família um aspecto fundamental: o da comunicação. Segundo sua visão, a mesa é o espaço onde grande parte dos imperativos culturais são transmitidos geracionalmente, exercendo um papel vital no fortalecimento dos laços familiares e, consequentemente, sociais. Socialização essa, que transmite uma série de valores ao convívio não apenas em sociedade, mas em sociedades específicas cujo “gosto” irá definir a classe social e o estilo de vida aos quais cada indivíduo pertence (Bourdieu, 1983). Parafraseando Jean Anthelme Brillat-Savarin, “diga-me o que comes e eu te direi o que és” (Sage mir, was du ißt, und ich sage dir, wer du bist). A célebre frase proferida, em 1826, na Fysiologia do gosto. Meditações sobre a gastronomia transcendental continha em si, uma série de significados que relacionavam-se, essencialmente, ao prazer e requinte em comer, mas talvez hoje ela adquira novos significados. Que tipo de sociedade a comida que comemos é capaz de revelar?

A função social da alimentação, que por milhares de anos permaneceu praticamente intacta, tem perdido sua centralidade de forma muito intensa. O avançar da modernidade tem gerado uma dupla problemática alimentar. De um lado, presenciamos o gradual desaparecimento do hábito de sentar à mesa e comer em família, do processo de preparo dos alimentos e de interações simbólicas ligadas à refeição, para aos poucos voltar à logica de comida como uma necessidade de suprir demandas nutricionais. Os produtos industrializados somam-se à praticidade dos fast foods que reduzem “refeição” a “comida” e simulam uma falsa globalização do gosto, obedecendo a uma lógica de “cozinha internacional” que não consegue propagar a cultura dos países aos quais remete. Ela apenas apropria-se de elementos abstratos e convencionais e contribui para a padronização de um resgate cultural artificial que remete a lugar nenhum. Câmara Cascudo, já em 1967, identificando a velocidade de transformação dos hábitos alimentares travou críticas contundentes à tendência de mecanização da cozinha:

A industrialização dos alimentos reduz a comida a um armário de latas. (…) Uma alimentação mecanizada, sequência de pratos escolhidos maquinalmente e trazida na ração individual como o tigre que recebe o naco sangrento é uma homenagem ao jardim zoológico e aos Parques Animais. (…) Julio camba profetizou “preveo que en el transcurso de muy pocas generaciones el arte de comer habrá sido enteramente sustituído por la ciência de nutrirse”. (…) Comer é um ato orgânico que a inteligência tornou social. (…) Comer para viver e viver para comer são formas excepcionais, irracionais e criminosas do direito de existir (CASCUDO, 1983: 36-37).

De outro lado, percebemos a intensificação da pauperização dos campos em todo o mundo e a desapropriação de terras cultiváveis de pequenos proprietários para incorporação de grandes empresas alimentares globais. A mudança no processo de produção dos commodities agrícolas tem intensificado a desigualdade de acesso a alimentos e reduzido a qualidade daquilo que é consumido. Apesar do intenso processo de modernização dos países do Sul ter revolucionado, a partir da década de 1970, a eficiência no campo e contribuído também, na esteira da “Revolução Verde”, para o crescimento exponencial da produção agrícola mundial, as consequências sociais desse processo foram desastrosas e responsáveis pelo aumento das monoculturas latifundiárias, declínio das agriculturas familiares e intenso êxodo rural (Chonchol, 2005). Além disso, a vinculação de produção às lógicas de um mercado de alimentos cada vez mais globalizado contribui para uma má distribuição de alimentos e marginalização de certas populações, bem como para o desvio do uso de terras cultiváveis e grandes volumes de água para produção de biocombustíveis ou ração para produção de animais.

Assim, de uma dupla visão, o sistema alimentar de nossa sociedade é insustentável. Não se trata apenas de entender o que comemos?, mas como comemos? E por que assim comemos? Qualquer projeto revolucionário de transformação social não pode negligenciar essas questões, pois por meio delas chegaremos ao passo seguinte: sua superação.

À convivialidade…

Como demonstrado, a comensalidade pode ser compreendida como um elemento “fundador” do humano e o convivium (ou banquete) sua expressão máxima. Convivium também é sinônimo de convívio ou vida em comum (cum vivere). Nesse sentido, uma filosofia política que aposta no convivium como alternativa sistêmica em oposição à produtividade industrial e que reforça a importância da relação autônoma e criativa entre indivíduos (Illich, 1973) perpassa, necessariamente, pela reconstrução integral tanto do modelo de produção e circulação de alimentos, quanto da sua própria forma de preparo e consumo. No atual modelo de sociedade que vivenciamos, não há um contrato de cum vivere (ou se há, não é respeitado…). Certamente há banquetes, mas nem todos são convidados a sentar à mesa. Assim, o primeiro passo é identificar quem fica de fora do banquete, para em seguida, buscar formas de trazê-los à mesa. Não cabe aqui, nem é necessário nominá-los. Somos muitos, em diferentes formas e contextos. Pouco a pouco é crescente o número de indivíduos deixados de fora, mas também não é difícil perceber que uma série de iniciativas têm, aos poucos, rompido as barreiras impostas pelos nossos modelos de sociedade para recriar criativamente novas dinâmicas de convivium. Tais dinâmicas atuam em uma perspectiva alimentar que integra tanto o processo de valorização da comensalidade e de respeito à diversidade cultural, quanto a necessidade de pensar alternativas sustentáveis de produção e circulação de alimentos.

A partir de 2001 um grande número de indivíduos em movimentos sociais de bandeiras tão diversas decidiram buscar novas alternativas à globalização capitalista. Eis que surgiu o Fórum Social Mundial (FSM) em oposição ao fórum econômico de Davos, ambiente exclusivo aos donos do capital, onde certamente não faltara um belo banquete. Se a ideia inicial era demonstrar resistência à visão do capitalismo como fim da história, aos pouco pudemos perceber que o FSM funcionou como uma grande mesa posta e pronta a receber uma pluriversalidade de alternativas. Slow food, veganismo, soberania alimentar, cultivos sustentáveis, agricultura familiar, cooperativas agroindustriais, alimentos orgânicos, hortas solidárias, decrescimento, agricultura urbana e periurbana, reforma agrária, economia solidária, respeito às culturas alimentares locais, dentre muitas outras formas de contestar o sistema alimentar vigente emergem e se fortalecem em um espaço em que o caminho para a convivialidade já foi descoberto. O Manifesto convivialista, nesse sentido, se propõe a uma etapa posterior: agregar diversas dessas formas alternativas já conhecidas, mas talvez desacreditadas para transformar o contrato de cum vivere em algo que transcenda os movimentos sociais para se constituir como espaço aberto, de fato, a todos. Afinal, talvez a convivialidade se trate disso: uma forma de convidar todos à mesa…

Referências:

BOURDIEU, Pierre (1983). Gostos de classe e estilos de vida. In: Ortiz, Renato (org.) Bourdieu. São Paulo: Ática.

CASCUDO, Câmara (1983). História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia.

CHONCHOL, Jacques (2005). A soberania alimentar.Estud. av. [online], vol.19, n.55 [cited  2015-03-31], pp. 33-48.

FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (1998). História da Alimentação. São Paulo: Estação liberdade.

ILICH, Ivan (1973). Tools for Conviviality. Nova York: Harper and Row.

JOANNÈS, Francis (1998). A função social do banquete nas primeiras civilizações. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação liberdade.

MAFFESOLI, Michel (2002). Mesa espaço de comunicação. In: DIAS, Cecilia Maria de Moraes (Org.). Hospitalidade: reflexões e perspectivas. São Paulo: Editora Manole.

MONATARI, Massimo. Sistemas alimentares e modelos de civilização. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação liberdade.

PERLÈS, Catherine (1998). As estratégias alimentares nos tempos pré-históricos. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: estação liberdade.

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