Fios do tempo. Revolução do dom com senso de oportunidade – por André Magnelli

Republicamos agora de amanhã o artigo de André Magnelli saído originalmente no Jornal do Brasil, como parte de uma série que propõe o dom como meio de transformação individual, ética, social, econômica e política. Esse é o terceiro artigo da série, publicado depois de Revolução do dom contra o antiutilitarismo radicalizado e Reativar a arte do dar e redescobrir a paixão pelo dom, e ao qual se segui Como ser imune à falsa generosidade?.

Disponibilizamos também em formato de áudio! Boa leitura, boa escuta.




Revolução do dom como senso de oportunidade

Fios do tempo, 20 de março de 2020
(Publicado em Jornal do Brasil, 26 de agosto de 2018)

Vivemos em tempos de mutações. Alguns veem nisso abismos rumo a catástrofes; outros, alternativas para transformações. Da decomposição do velho surgem as possibilidades do novo. Na sequência de dois artigos escritos por mim aqui no JB, a favor de uma “revolução do dom”, perguntemos agora: quais são as oportunidades existentes?

Temos muitas razões para desencantos. Mas compartilho a visão do filósofo Marcel Gauchet: sou pessimista a curto prazo, mas otimista a longo. Vale ressaltar que permanece, mais do que se imagina, um espírito de dom, de generosidade e de reciprocidade espraiado pelo social (sobretudo na vida privada, mas também nas instituições, nas organizações e nas relações informais na vida pública). Além disso existe uma série de transformações que trazem alternativas ao utilitarismo radicalizado ou a um “tudo-mercado”. Na esteira das novas tecnologias, surgem ideias e práticas mais híbridas, que misturam privado e público, individual e social, interesse e desinteresse, competição e cooperação, técnica e moralidade, instrumentalidade e comunicação. Muitos são os nomes e propostas: solidárias, civis, cooperativas, colaborativas, “de compartilhamento”, associativas etc. Com elas, aspectos centrais da economia, como modos de produção, distribuição e consumo, o crédito e a moeda, os regimes de propriedade e de “lucro/interesse”, estão tendo inovações que poderão virar práticas generalizadas, ao mesmo tempo eficientes, justas e éticas. Além disso, vemos fervilhar propostas em torno do direito, dos saberes, da ética e de ações sociais, estatais e públicas.

Eis um cenário de oportunidades. Se nossa humanidade sobreviver à (talvez) passageira onda de demência moral e intelectual e ao (certamente) duradouro desafio ecológico e social, teremos boas razões para vislumbrar um mundo melhor. O que não quer dizer que não haja, também, problemas mais complexos. Basta citarmos o desafio de gerar renda, segurança e vida digna para os trabalhadores que perderão seus antigos postos e, também, para aqueles que, prestando serviços, se deparam cada vez mais como a regra da flexibilidade, do baixo preço ou, até mesmo, da pura e simples gratuidade. Independente disso, o que entender por “revolução” do dom? Proponho dois sentidos.

Antes de tudo, um sentido antigo, como uma volta sobre nós mesmos (re-volutio) que reative estruturas antropológicas e gere outra compreensão do que somos. Afinal, toda revolução começa por si mesmo; o que ocorre quando assumimos uma ética capaz de conformar nosso modo de vida. A aposta é que a lógica do dom nos conecta com os valores que mais prezamos e é uma opção de vida bem realista; pois o sábio uso da arte do dar se relaciona a uma “vida bem sucedida”. Como dizem os sociólogos A. Caillé e Ph. Chanial, nossa individuação realizada e autônoma depende da intersubjetividade dos dons.

Mas quando falo em “revolução” penso também em outro sentido: o que precisamos fazer para florescer tal lógica? Ora, se sinalizamos as potencialidades existentes, precisamos, igualmente, de um olhar crítico que observe, com senso de realidade, quais são as estruturas sociais e as dinâmicas institucionais que dificultam e, mesmo, impossibilitam formas alternativas de vida, ação e trabalho. Fazer revolução é, portanto, orientar-se para transformar, com vontade, as estruturas.

Todavia, estejamos longe de defender as revoluções d’outrora; afinal, a era das panaceias terminou. Se, há pouco, “revolução” significava tomada de poder do Estado e transformação total da sociedade, hoje nos são exigidos mais humildade e reconhecimento da complexidade. Mas se, com o desvanecimento das ilusões, é fácil fugir para o conformismo desencantado, o catastrofismo crítico ou o populismo messiânico, digamos que criticistas, conformistas e populistas hão de perder suas auras sedutoras. Sendo inaceitável aderir aos males existentes, é insuportável só criticar tudo, anunciar apocalipses ou apelar a demiurgos; importa aproveitarmos as oportunidades existentes e ampliar, afetiva e cognitivamente, nosso campo dos possíveis. Como nos ensinou o sociólogo Max Weber, “a política é como a perfuração lenta de tábuas duras”, o que “exige tanto paixão quanto perspectiva”. Munidos de uma ética da responsabilidade e de uma “fortaleza de coração”, temos que nos mover em busca do que é possível, sem perder a consciência de que, muitas vezes na história, ele só é alcançado quando é o impossível que almejamos.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com). 
 Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do  presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.


Clique aqui para acessar o artigo original no Jornal do Brasil. 


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